terça-feira, novembro 12, 2013

Enquanto homem, enquanto mulher, enquanto foi possível

enquanto homem enquanto mulher enquanto foi possivel

- Preciso me deitar ou posso apenas me sentar?
- Como achar melhor, sinta-se a vontade.

- Pelo que vejo hoje você está de bom humor, fale-me um pouco sobre isso.
- O meu humor está um pouco melhor do que ontem e bem pior do que amanhã. Apenas não estou mais tão preocupado com meu estado de espirito, tenho deixado às coisas acontecerem e vou seguindo. Sabe, é um dia após o outro, um passo de cada vez. Tenho deixado de lado o sentimentalismo barato e estou focado em existir.
- Seria isso uma falta de interesse?
- Não, muito pelo contrário, estou interessado em continuar sem procurar respostas. As perguntas não serão feitas e por isso mesmo, não precisam ser respondidas por ninguém. Acabou e pronto.

- Que bom que as coisas estão indo bem, conte-me mais sobre como pretende seguir de agora em diante.
- Seguir?
- É você me disse que resolveu não se preocupar mais...
-Tudo tem um começo e provavelmente um fim, se é isso que quer saber. Acontece que o meu começo não foi diferente do de todos os outros. O final é que não quero que seja igual e por isso estou reconsiderando tudo. Não adianta ficar dando murro em ponta de faca, quando não dá, não dá e pronto.

Muita gente fica com essa coisa de nós, de sentimento, de querer mostrar algo que nunca existiu. Errei demais quando não dei atenção a mim e consequentemente a tudo o que estava a minha volta. Perdi, perdemos, sei lá, tempo demais, gastamos energia com inutilidades e agora estamos às voltas com suposições desmedidas.

Conhecemo-nos muito jovens e ela tinha lindos olhos azuis que me passavam tranquilidade. Eu era apenas um rapaz idealista pensando na próxima batalha e em como fazer para vencê-la. Casamo-nos porque queríamos ficar juntos para sempre, igual aos filmes que víamos no cinema e só descobrimos, talvez cedo demais, que os filmes ocultavam detalhes importantes sobre o “para sempre”.

Lembro-me bem quando compramos nosso primeiro apartamento apertado, nos mudamos para um bairro distante e fomos. O sorriso em seu rosto já havia desaparecido e começamos a sonhar com as coisas que a sociedade capitalista e consumista sonha. Queríamos ser, queríamos pertencer e nossos dias passaram a ser focados em conseguir. Acordávamos antes do nascer do sol e retornávamos depois que ele já havia ido. Nossas conversas eram sobre a secretaria mala do departamento, a promoção do bajulador do setor, o que o mercado exigia de nós e o que esperávamos que este mesmo mercado nos desse. Não tínhamos tempo para romances, coisas pequenas, cotidiano, estávamos focados em crescer.

Ela foi promovida, nos mudamos para um apartamento maior. Eu fui promovido, nos mudamos para uma casa. Nós fomos promovidos, compramos uma casa com piscina. Nunca usamos a piscina, nem a churrasqueira que custou uma fortuna e muito menos a casa, não tínhamos tempo para isso. Nossa separação foi amigável, sem magoas, pelo menos da minha parte. Ela derramou algumas lágrimas durante o discurso final, nossa ultima conversa, e eu não tive coragem de me desculpar por nada.

O amor acabou antes mesmo de começar. Perdi a parte em que deixamos de ter prazer, perdi a parte em que a tranquilidade daqueles olhos azuis se foi. Perdi muitas partes.

- Você ainda a ama?
- É possível deixar amar alguém que representa a sua existência?
- O que você acha?
- Acho que não e é por isso que ainda a amo. E por amar tanto essa mulher, não quero cometer os mesmos erros.


- Existe esta possibilidade?
- Qual? De eu ainda ama-lo? Sem chances, hoje sem chances. Talvez ele tivesse me procurado antes e eu pudesse reconsiderar, mas não hoje, não agora. Dói muito ter que dizer isso, afirmar assim sem volta, mas é o que está dentro de mim e o que está dentro de mim diz que não posso resgatar um sentimento que deixamos morrer enquanto tivemos a chance de salva-lo.

Ele deve estar lá envolto com as garrafas de uísque, as taças de vinho e as doses de vodca ou quem sabe perdeu de vez o gosto pelos prazeres da vida e mudou-se para o Tibet. Nunca consegui decifra-lo. Para não dizer que nunca, eu o decifrei em junho, no ano em que nos conhecemos ainda jovens e percebi que era ele. Decifrei o que seus olhos diziam e compreendi que estávamos destinados a ficar juntos para sempre.

Não foi pelo sorriso largo ou pelas mãos firmes que me pegavam forte, foi por nós, por aquilo que sentíamos. Não pulamos etapas, seguimos fielmente o protocolo, e acho que por isso não soubemos como lidar com as situações que a vida nos apresentou. Evoluímos profissionalmente rápido demais, nem deu tempo de curtir a casa, as casas, as conquistas. Nossos dias eram dedicados ao ato continuo de nunca estar satisfeito com o que tínhamos. O apartamento apertado me dá tantas saudades de nossos esbarrões na cozinha, nosso sofá que mal cabia na sala e da cama que tivemos que desmontar para que pudesse entrar no quarto. Éramos jovens, mal havíamos ultrapassado a barreira dos vinte e pensávamos como se já tivéssemos ultrapassado tantas outras barreiras.

A piscina ainda deve existir, o que não existe mais somos nós.

- E o conto de fadas?
- Conto de fadas... Lembro-me bem das histórias que ouvia sobre princesas presas em castelos e príncipes dispostos à salva-las. Nunca fui uma princesa e ele nunca foi um príncipe, não nos dispusemos a salvar um ao outro, não pensamos nisso enquanto tudo ruía, nosso orgulho não deixou que fizéssemos isso.
- Tanto por tão pouco?
- Tão pouco por tanto. Tão pouco amor por muito sofrimento. Tão pouco viver por muito pesar. Tão pouco eu por muito ele. Tão pouco ele por muito eu.
- Águas passadas...
- Elas movem moinhos, não todos, mas movem...


Chovia tanto em vinte e três de junho que muitos serviços foram interrompidos. Os táxis não conseguiam atender a demanda, ônibus circulavam cheios e com dificuldade em diversos trechos, carros eram abandonados e seus donos refugiavam-se em lojas, prédios e shoppings. Parecia que estávamos diante de um novo diluvio, mas sem uma arca ou coisa do tipo, não havia o que fazer senão esperar e confiar. Ele esperou até as 20h00min e não aguentando mais correu por ruas cobertas de lama e embaixo de chuva até se lançar dentro de uma loja que já fechava as portas.

No interior da loja vários clientes assustados, molhados e preocupados em como iriam retornar a seus lares. Ele estava molhado, aliviado por estar em local seguro e admirado com a beleza de uma menina de olhos azuis que pacientemente torcia o casaco e procurava não preocupar-se com o frio. Por alguns instantes, que pareceram uma eternidade, ele a observou em seus lentos movimentos, tudo parecia em câmera lenta e cada gesto seu, para ele era como que uma pintura. A chuva lá fora, o vento, o frio e o caos, não tinham a menor importância diante daqueles olhos azuis, ele estava tranquilo, eles lhe passavam essa tranquilidade.

- Meu filho! Meu filho! Dê-me licença!
- Desculpe, desculpe...
- Essa juventude de hoje não presta a atenção em nada.
- Oi! Você! Ei! Acorda!
- Hum, o que?
- Está dormindo? A chuva te deixou assim? Parece que nunca viu uma mulher na vida, porque me olha tão fixamente?
- Eu? Como?
- Você mesmo. Fumou alguma coisa? Bebeu? Acorda!
- Estou acordado.
- Não parece...

Por horas a fio eles conversaram sobre os mais diversos assuntos, falaram de astronomia, astrologia, sexo dos anjos e culinária. Poemas do Drummond que ele gostava e ela achava monótono, filmes do Al Pacino que ela adora e ele achava sem graça e tantos outros gostos e manias que eles não tinham em comum. Aquele dia foram expulsos da loja, seis meses depois fizeram intercambio em Londres, comemoraram três anos de namoro com um jantar ao ar livre e casaram-se com a promessa de viverem juntos para sempre.

De assistente a chefe de departamento, de chefe de departamento a coordenadora. O apartamento era pequeno para tantos sonhos, planos e ambições. Mudaram-se para um mais confortável, com espaço para os livros, os cd’s, os sapatos dela e os vinhos dele.

De analista a coordenador, de coordenador a gerente. O apartamento já não era o melhor que eles podiam ter. Foram morar em uma casa com varanda e churrasqueira. Os livros aumentaram, os cd’s foram trocados por arquivos digitais, os sapatos dela ganharam um closet exclusivo e os vinhos dele receberam a companhia de garrafas de uísque.

Diretores não podiam morar em qualquer lugar e eles compraram uma casa de frente para o mar, com piscina. Os livros, os arquivos digitais, os sapatos, os vinhos e os uísques, tudo permaneceu como estava. Eles é que nunca foram mais os mesmos desde que se mudaram do pequeno apartamento. A separação, inevitável, aconteceu.

Enquanto foi possível eles fizeram o impensado, mas esqueceram-se de manter acesa a chama. Conquistaram muito status, cargos importantes, bens materiais e perderam o amor. A tranquilidade dos olhos azuis se foi junto com os ideais de uma vida em comum onde viveriam juntos para sempre.

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