No começo era pó. Apenas isso. Pó e nada mais. Até que a água ferveu e o pó se converteu, transformou-se em café, uma xícara, ela não gostava de café.
- Não acha forte demais?
- Estou acostumado a duas colheres de pó, meia de açúcar e meia dose de rum.
- Pela manhã?
- Aos sábados. Aos domingos dispenso o café, meia dose de rum já me desperta e mantém.
- Interessante conhecer um pouco mais de uma rotina tão comum como a sua. Você continua o mesmo metódico de sempre e aposto que ainda usa aquela camisa verde, furada nas costas.
Ela não me conhecia com mais profundidade porque não quis. Desde que nos conhecemos em meados da década de noventa, que nunca mais nos desgrudamos. Ela ostentava aquela cabeleira vistosa e os olhos mais lindos que já vi. Nunca beijei boca igual, mesmo que não tenha dado tantos beijos assim e mesmo que ainda haja muitas bocas para beijar, acho que não beijarei boca igual.
- Larguei a agencia.
- Você nunca gostou de trabalhar com aqueles seres engomados, com ar de superioridade e diploma embaixo do braço.
- Eu nunca gostei de limites, é diferente.
- E os seus limites?
- Eu tenho limites aceitáveis, que são meus, não me limitam, mas impedem minhas experiências ruins.
- Como se apaixonar?
Realmente nunca fui um cara romântico, sempre que pude evitei essa coisa de romance, de paixão e declarações inúteis que no fim só nos trazem ruína. Fui muito apaixonado por ela, ainda sou, mas nunca consegui dizer isso ou demonstrar o quanto o meu sentimento por ela era verdadeiro. Os meus limites, eu que tanto odeio limites, eles, impedem que me jogue de cabeça.
- Você nunca cortou os cabelos.
- Cortei em Londres, mas você não estava lá.
- Deveria?
- Acho que não cabe a pergunta, pois a resposta é obvia.
- Agora realmente não tem mais importância alguma essa resposta.
- Na época, você nunca fez a pergunta, nunca fez nada por nós, sempre foi você em primeiro lugar.
Ela foi fazer mestrado em Londres, passei meses quebrando coisas em casa, bebendo em todos os bares que encontrava, fui internado duas vezes e encontrado na sarjeta outras tantas. Eu não queria que ela fosse, ela queria que eu fosse e assim nunca mais nos vimos até hoje. Ela casou, teve dois filhos, um cachorro e um engravatado que dorme com ela todas as noites. Eu não criei juízo, escrevo contos idiotas sobre relacionamentos perfeitos que não existem, sou viciado em rum e ainda completamente apaixonado por ela.