quarta-feira, setembro 18, 2013

Nós enquanto foi possível

nos enquanto foi possivel

Chovia tanto em vinte e três de junho que muitos serviços foram interrompidos. Os táxis não conseguiam atender a demanda, ônibus circulavam cheios e com dificuldade em diversos trechos, carros eram abandonados e seus donos refugiavam-se em lojas, prédios e shoppings. Parecia que estávamos diante de um novo diluvio, mas sem uma arca ou coisa do tipo, não havia o que fazer senão esperar e confiar. Ele esperou até as 20h00min e não aguentando mais correu por ruas cobertas de lama e embaixo de chuva até se lançar dentro de uma loja que já fechava as portas.

No interior da loja vários clientes assustados, molhados e preocupados em como iriam retornar a seus lares. Ele estava molhado, aliviado por estar em local seguro e admirado com a beleza de uma menina de olhos azuis que pacientemente torcia o casaco e procurava não preocupar-se com o frio. Por alguns instantes, que pareceram uma eternidade, ele a observou em seus lentos movimentos, tudo parecia em câmera lenta e cada gesto seu, para ele era como que uma pintura. A chuva lá fora, o vento, o frio e o caos, não tinham a menor importância diante daqueles olhos azuis, ele estava tranquilo, eles lhe passavam essa tranquilidade.

- Meu filho! Meu filho! Dê-me licença!
- Desculpe, desculpe...
- Essa juventude de hoje não presta a atenção em nada.
- Oi! Você! Ei! Acorda!
- Hum, o que?
- Está dormindo? A chuva te deixou assim? Parece que nunca viu uma mulher na vida, porque me olha tão fixamente?
- Eu? Como?
- Você mesmo. Fumou alguma coisa? Bebeu? Acorda!
- Estou acordado.
- Não parece...

Por horas a fio eles conversaram sobre os mais diversos assuntos, falaram de astronomia, astrologia, sexo dos anjos e culinária. Poemas do Drummond que ele gostava e ela achava monótono, filmes do Al Pacino que ela adora e ele achava sem graça e tantos outros gostos e manias que eles não tinham em comum. Aquele dia foram expulsos da loja, seis meses depois fizeram intercambio em Londres, comemoraram três anos de namoro com um jantar ao ar livre e casaram-se com a promessa de viverem juntos para sempre.

De assistente a chefe de departamento, de chefe de departamento a coordenadora. O apartamento era pequeno para tantos sonhos, planos e ambições. Mudaram-se para um mais confortável, com espaço para os livros, os cd’s, os sapatos dela e os vinhos dele.

De analista a coordenador, de coordenador a gerente. O apartamento já não era o melhor que eles podiam ter. Foram morar em uma casa com varanda e churrasqueira. Os livros aumentaram, os cd’s foram trocados por arquivos digitais, os sapatos dela ganharam um closet exclusivo e os vinhos dele receberam a companhia de garrafas de uísque.

Diretores não podiam morar em qualquer lugar e eles compraram uma casa de frente para o mar, com piscina. Os livros, os arquivos digitais, os sapatos, os vinhos e os uísques, tudo permaneceu como estava. Eles é que nunca foram mais os mesmos desde que se mudaram do pequeno apartamento. A separação, inevitável, aconteceu.

Enquanto foi possível eles fizeram o impensado, mas esqueceram-se de manter acesa a chama. Conquistaram muito status, cargos importantes, bens materiais e perderam o amor. A tranquilidade dos olhos azuis se foi junto com os ideais de uma vida em comum onde viveriam juntos para sempre.

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